POLÍMNIA

Para ele tudo parecia novo. Não reconhecia seu rosto no espelho, seus amigos, sua família. Os dias se passavam num ritmo descompassado. Um sonho desconexo e sem linearidade, mas estranhamente real.

Em um de seus instantes de encarnação do que fora se viu lutando e dizendo palavras sem sentido para sua mãe e seus irmãos que tentavam dominá-lo. Lembrou-se apenas de sua profissão. Escritor. Mas isso não trazia luz à escuridão de seu hipocampo. Viu-se impelido a agarrar o pescoço de sua mãe. Noutro fragmento das imagens turvas que lhe chegavam à visão e à sua mente cambiante, era exatamente o que fazia. Se sentia beijado por Polímnia, musa das palavras. Os sons da luta pareciam distantes. Os irmãos batiam nele como se em lentos movimentos.

A voz do psiquiatra ainda era distante e sua imagem turva, mas entendia perfeitamente o que ele dizia. De um ímpeto levantou da cama. O psiquiatra segurava um calhamaço. Era o trabalho de anos de seu paciente. Assassinatos em troca de inspiração. O médico o ajudava nos crimes.

Sua mãe estava morta. Suas lembranças o confundiam. Seu corpo estava mutilado - o preço da inspiração quando não conseguia matar ninguém. Fugiu pra viver novas vidas.

Publicado originalmente no zine Os Putos e as Donzelas # 03 (Mai/Jun de 2005) do grupo literário Luminários.