PRISÃO PARTICULAR


Tenho cinquenta e poucos anos. Não falo dos poucos porque há muito os perdi conscientemente de minha contagem. Não faço mais anos, me escondo da inexorabilidade da velhice que me chama a cada instante. Ela não me seduz, mas com ela me casarei num amor fadado ao fim. Queria ter morrido na adolescência. Feliz e realizado. Morrido em um acidente de carro ao participar de pegas ou de overdose, tentando tirar a essência da vida, tentando descobrir quem era. Abstive-me sempre dos prazeres pequenos, de mentir, de dançar, de transar loucamente com pessoas sem nome. De perder a consciência e o juízo para o álcool. De viajar levando apenas uma mochila com coragem e curiosidade. Desde pequeno acho que nasci no corpo errado. Vejo-me no espelho e não me reconheço. Aquele não sou eu. Vejo-me diferente. E esse corpo, esse rosto, representam quem não sou e contam mentiras sobre mim para quem se aproxima. Represento um papel através dele. Queria ter sido camaleão, mutável, corpo de amante latino, suor e sedução, mas me contive covardemente com o não-eu imposto por meu físico. Não vivi o que gostaria com medo de me transformar, de sair do comum biótipo a que estive condenado a existir. De páginas amareladas de psicologias superadas numa biblioteca empoeirada aprendi que sou ectomorfo. Minha vontade era ser mesomorfo, quem sabe meu comportamento seria outro, condizente com o que sempre quis ser. Nasci no corpo errado, e para mim – fugindo do que Platão quis dizer e muitíssimo distante do que disse Paulo, o apóstolo –, ele me foi, por toda a vida, realmente um cárcere.

A REDE


Ele era um jovem e tradicional vaqueiro do interior do Ceará. Gostava de andar a cavalo para observar e se orgulhar do seu pequeno rebanho, que herdara do pai, que também lhe ensinara toda a arte de cuidar de gado. Dava-lhe prazer tratar o gado como pessoas, e a vacaria, e toda a pequena fazenda, como uma empresa, da qual ele entendia que administrava com esmero. Aquele era seu mundo, ali nasceu, aprendeu com o pai a ser vaqueiro, tinha o sotaque dali e casara-se com uma das primas, que nem era tão atraente para ele, mas era da família e era aquela a tradição que aprendera. Nunca havia viajado e só conhecia o mundo pelo segundo grau mal feito e pela pequena TV preto e branco, onde via o noticiário, comparando sempre as confusões do mundo com o comportamento de suas vacas, para ele sempre felizes e sem preocupações.

Certa manhã, quando caminhava pela pastagem observando o gado e as serras em redor, o que fazia sempre quando o sol começava a dar os primeiros bons dias, notou que seu rebanho estava irrequieto, parecia que algo havia-lhe assustado. Procurou em redor mas não viu nada que pudesse causar medo, nenhum animal estranho à fazenda. Sem entender o que se passava com as vacas, aproximava-se delas, tocava-lhes com carinho, mas muitas pareciam assustadas e outras até mesmo deprimidas. Não entendendo mesmo o que havia acontecido, resolveu esquecer, pois já era hora dos peões da fazenda levarem as vacas leiteiras para a ordenha.

O tempo passou e o problema daquela manhã continuou a se repetir e as vacas começaram a emagrecer e a morrer. Com medo de perder todo o seu gado, resolveu investir em um curso de veterinária na capital, como dizia. O curso era dado por veterinários experientes o que lhe fez acreditar que seria de grande proveito para ele. Chegando à capital, logo se vislumbrou com tantas coisas novas que se refletiam em seus olhos. Começou o curso com empenho e dedicação e rapidamente fez amigos, com quem sempre saia para conhecer o mundo que não existia entre suas vacas. Para ele tudo era novidade, agora ele experimentava o mundo do qual tivera sonhos secretos antes de dormir. Nos estudos era exemplar e ficava imaginando como seu pai e ele mesmo, puderam cuidar do gado por tanto tempo sem conhecer todas aquelas técnicas que estava aprendendo. Acreditava que agora iria quadruplicar o seu rebanho e aumentar sua fazenda, e poderia, finalmente, fazer uma reforma no velho casarão. Sonhava à noite antes de dormir, com sua fazenda próspera, seu gado mais gordo, mais feliz. Sua esposa poderia ficar mais atraente com as jóias e vestidos que lhe compraria. Seus filhos iriam estudar na cidade grande, para ver como o mundo é imenso e não se restringe só a terras e gado.

O curso acabou e o vaqueiro voltou para o interior cheio de projetos para pôr em prática tudo que aprendera. Logo que chegou à fazenda fez um grande churrasco para a família e os empregados, para comemorar sua volta. Disse que a partir daquele dia todos iriam ver aquela pequena fazenda se transformar numa imensidão de terras e gado. No outro dia cuidou de suas vacas, empregou técnicas que aprendera no curso e almoçou com satisfação. À tardinha escreveu todo um projeto para a maximização de seu rebanho. Previu tempo de engorda, abate, venda e novas aquisições. No dia seguinte ordenhou as vacas leiteiras, ensinou aos empregados a nova dieta para o gado e caminhou como costumava, na pastagem. À tarde tirou uma longa soneca na rede que sempre deixava na varanda.


Passaram-se dias, semanas, meses e todos notavam a melhoria na fazenda. O vaqueiro comprou terras vizinhas, reformou o casarão e o gado estava sendo considerado o melhor da região. As vacas já não pareciam mais assustadas e deprimidas, ele próprio notara a felicidade das vacas quando caminhava entre elas pela manhã. Mas aquilo dava-lhe muito trabalho, não era fácil seguir um novo modelo de criação de gado como imaginara em seus sonhos na capital. Os modos de tratar do gado que herdara do pai lhe pareciam novamente bons, não lhe dava tanto trabalho, não precisava dar tudo de si, como agora fazia. Além do mais, o entusiasmo adquirido no tempo dos estudos, os projetos, as imagens todas, estavam aos poucos desaparecendo de suas lembranças. Para ele nada mais gostoso do que à tarde, depois do almoço deitar-se e dormir tranqüilamente na rede da varanda. A fazenda ficou sem força motivadora e aos poucos voltava a rotina de antes. O vaqueiro já não falava para os filhos do mundo que existia lá fora. Também já não falava entre os peões da fazenda de suas aventuras na capital. A fazenda voltou a ser a fazendinha do seu Minino. E seu Minino ficava se perguntando quando caminhava na pastagem sob o sol que ainda nascia, com grande contentamento em ter aquele pequeno rebanho e cuidar de gente que não conhecia o mundo que conhecera na cidade grande, por que já não sonhava mais à noite...

FORTALEZA NOS QUADRINHOS


Fortaleza foi, recentemente, cenário para uma história em quadrinhos de um dos mais famosos personagens dos gibis americanos, Wolverine, dos cultuados X-men. A história foi publicada no final de 2006 na Europa e EUA e em fevereiro deste ano traduzida no Brasil. Nas lojas especializadas em quadrinhos de Fortaleza, no entanto, só pôde ser facilmente encontrada há pouco tempo. Os autores são franceses. Jean-David Morvan e Philippe Buchet, que, curiosamente, nunca estiveram em nossa cidade.

A trama gira em torno de uma criança fortalezense com poderes especiais e que mora no Pirambu. Sua mãe, ele conta, o teve em um lixão, morrendo ali, sendo levada por um caminhão de lixo. Ele sobreviveu e foi mandado para um orfanato. Wolverine o conheceu quando o menino, de nome Xexéu, roubou sua moto logo quando desembarcou no porto. Ele se solidariza com o menino e o acompanha, depois de salvá-lo de uma gangue que tomou a moto que havia roubado. Depois se diverte tomando banho de mar e dormindo no barraco do garoto. Diz que foi melhor que ir para um hotel para turistas na Praia de Iracema.

Aliás, a cidade representada não é para turista ver. Tudo bem, temos nossos problemas, mas os cenários são totalmente inverossímeis, os autores não fizeram sequer pesquisa. Fortaleza é só mato, ruas de terra, barracos e homens armados, com carros e ônibus saídos da década de 70, quebrados e sujos.

No clímax da história o menino a quem Wolverine se apega é obrigado a trabalhos forçados na Serra Pelada. Anacrônico e sem noção de geografia. Mesmo com tudo isso, Wolverine, no final da história, já nos EUA, relembra dos tempos em que esteve na Terra do Sol e usa a palavra aprendida por aqui para expressar o que está sentindo. Saudade. Aliás a palavra da título a HQ.

Sei que é uma obra de ficção, mas porque o encantamento estrangeiro com nossa faceta pobre? Estranhamento ou ignorância?

A INDUSTRIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA

Adorno e Horkheimer, da Escola de Frankfurt, interpretaram como ninguém o espírito consumista do século XX. Para eles o Capitalismo transforma arte em mercadoria, diminuindo assim o seu valor.

Entramos no século XXI seguindo a mesma lógica, isto é, qualquer coisa pode ser transformada em dinheiro. Dessa vez industrializamos e transformamos a violência, fenômeno que vem crescendo de forma significativa nas grandes cidades. Os americanos, claro, já vem representando a violência deles no cinema, tão conhecido nosso. Por aqui, em terras tupiniquins, estamos aprendendo. Com livros como “Cidade de Deus” do escritor e sociólogo Paulo Lins e “Estação Carandiru” do médico Dráuzio Varella, best-sellers que também viraram filmes de grande sucesso. Não quero, obviamente, questionar sua qualidade e importância. Mais recentemente apareceram “Abusado” e “Rota 66” do jornalista Caco Barcellos e a mini-série “Cidade dos Homens” e o documentário “Falcão” do Fantástico, ambos da Rede Globo (este foi proibido). Isso para citar só os mais conhecidos.

Tudo bem, levamos a favela à classe média, aos lares e mesas de jantar; tornamos pública a violência urbana, mas e daí? Compramos a violência, nos divertimos com ela e nos esquecemos de que ela não é uma mercadoria, mas uma realidade que precisa ser combatida. Não se distraia muito com esses produtos, alguém pode assaltá-lo.

A ESQUERDA E O PODER EXECUTIVO

Demoramos, mas vamos admitir de uma vez por todas, a esquerda brasileira só tem competência no legislativo.

Ao longo dos anos a esquerda do Brasil conquistou seu espaço fazendo as leis. Avançou em questões ligadas aos direitos humanos, provou competência política, arregimentou de estudantes a intelectuais. De movimentos homossexuais a movimentos ecológicos. Acreditamos numa esquerda inteligente, capaz, que finalmente levaria o Brasil ao tão sonhado país do futuro, o medo se transformou em esperança.

Com algumas exceções que confirmam a regra, já tínhamos visto a inaptidão da esquerda para o poder executivo através dos vários prefeitos eleitos pelo país, mas ainda tínhamos fé no operário. E por que não? Na época o acadêmico não nos parecia tão bom. Mas, ao que parece, ao chegarem lá nos mandos executivos, ainda não acreditando na vitória, lembraram do poeta: "E agora José?".

No executivo, a ideologia socialista não funciona. O que vemos é um ranço da ditadura estabelecida em todos os lugares onde o marxismo-leninismo deus as cartas, através de tentativas de controlar a imprensa e as universidades. Da imposição de juros cada vez mais altos, de uma carga tributaria que envergonharia até mesmo os coletores de impostos da Idade Média. De uma enxurrada de medidas provisórias. Da compra a altos valores de votos para a aprovação de projetos que lhes são convenientes e para que se encerrem CPIs constrangedoras e perigosas. Enquanto isso, o espetáculo dos comerciais caríssimos entretém o povo, que, afinal, adora televisão e acredita em tudo que ela transmite.

E assim vamos nós, cobaias para a derradeira tentativa de mostrar que a esquerda funciona, afinal, o Muro de Berlim já não existe, a China se rendeu ao capital e Cuba é uma ilha fracassada a espera da morte de seu chefe.

Por todos os lugares do país vemos os sindicatos, os movimentos sociais e estudantis perdidos, sem força, sem referências esquerdistas. Eles que viviam da religiosidade de teorias ultrapassadas descobriram que seu deus está morto. Estão aí, com rubor no rosto, baixando a cabeça para os amigos simpáticos ao neocapitalismo que dizem: "E aí, esperamos mais um ano?".

UMA HISTÓRIA REAL


Desde os dez anos, eu cultivo uma admiração especial pelos Estados Unidos da América. Minha paixão começava nos filmes, no seu governo, no seu poder, na sua supremacia e se estendia até as revistas em quadrinhos, passando, é claro, pela música. Apliquei-me até no estudo do Inglês, no colégio e em casa. E ainda conversava com vários adultos que conheciam as faces e facetas dos EUA.

Certo dia, quando eu já devia ter meus onze anos, estava folheando a lista telefônica em minha casa, quando algo prendeu minha atenção. Ali estavam, à minha frente, os códigos telefônicos internacionais. Veio de repente a tentação de ligar para meu admirável país. Mas, e o preço? Isso não seria problema, pensei, basta ligar a cobrar. Peguei um pedaço de papel. coloquei o número nove no início, logo em seguida o código de Los Angeles (minha cidade predileta), e ainda uma combinação de cinco dígitos. Fui ao telefone e liguei. Ouvi uma voz feminina do outro lado da linha. Adorei! (mesmo sem entender uma palavra, nem dizer nada). Liguei novamente para o mesmo número. Que legal! Seria a minha expressão infantil de entusiasmo. Repeti o processo mais três vezes.

Um mês é passado, a travessura já em algum lugar no subconsciente, esquecida. Chega a conta telefônica, surpresa! Lá estavam cinco vezes a Palavra Estados Unidos. O custo das ligações? Meus dois olhos. Eu na minha ingenuidade, pensava ter ligado a cobrar. Minha mãe, na sua cumplicidade aos filhos, apenas comentou, mas alertou sobre meu pai. Fiquei apreensivo, não sabia qual seria a sua reação, nem que respostas eu iria dar às suas perguntas. Já estava escurecendo quando ele chegou em casa e nos encontramos. Ele foi logo perguntando, mas calmamente: "Para que você ligou para os Estados Unidos"? Eu, sem uma resposta interessante e satisfatória., balbuciei: "Por... curiosidade". - "Cinco vezes"? Ele pergunta. Fico calado, e para minha felicidade ele estava de bom humor. Não bronqueou nem me pôs de castigo. Mas provavelmente, eu só voltarei a ouvir um americano ao telefone, se alguma criança de lá cometer a mesma travessura, ligando para o Brasil, e acertar o número telefônico da minha casa.