PRISÃO PARTICULAR


Tenho cinquenta e poucos anos. Não falo dos poucos porque há muito os perdi conscientemente de minha contagem. Não faço mais anos, me escondo da inexorabilidade da velhice que me chama a cada instante. Ela não me seduz, mas com ela me casarei num amor fadado ao fim. Queria ter morrido na adolescência. Feliz e realizado. Morrido em um acidente de carro ao participar de pegas ou de overdose, tentando tirar a essência da vida, tentando descobrir quem era. Abstive-me sempre dos prazeres pequenos, de mentir, de dançar, de transar loucamente com pessoas sem nome. De perder a consciência e o juízo para o álcool. De viajar levando apenas uma mochila com coragem e curiosidade. Desde pequeno acho que nasci no corpo errado. Vejo-me no espelho e não me reconheço. Aquele não sou eu. Vejo-me diferente. E esse corpo, esse rosto, representam quem não sou e contam mentiras sobre mim para quem se aproxima. Represento um papel através dele. Queria ter sido camaleão, mutável, corpo de amante latino, suor e sedução, mas me contive covardemente com o não-eu imposto por meu físico. Não vivi o que gostaria com medo de me transformar, de sair do comum biótipo a que estive condenado a existir. De páginas amareladas de psicologias superadas numa biblioteca empoeirada aprendi que sou ectomorfo. Minha vontade era ser mesomorfo, quem sabe meu comportamento seria outro, condizente com o que sempre quis ser. Nasci no corpo errado, e para mim – fugindo do que Platão quis dizer e muitíssimo distante do que disse Paulo, o apóstolo –, ele me foi, por toda a vida, realmente um cárcere.