SONS E ESPELHOS

You reached for the secret too soon
Threatened by shadows at night
(Shine On You Crazy Diamond-Pink Floyd)

Era uma pacata cidade do interior. Vidas simples que sublimavam temores pelas estranhas e misteriosas mortes que por lá haviam. Quem por ali passava não podia imaginar as orgias, rituais, profanações e pecados ocultos pela noite. Era melhor não saber de nada. A polícia se mantinha fora. Os casos eram resolvidos da maneira mais simplista. Talvez fossem somente desajustados sociais que queriam chamar atenção pra si. K. sabia que não. A maldição das estranhas mortes era uma realidade. Os caixões fechados nos velórios ocultavam as faces disformes das... ele relutava em chamar de vítimas. Eles quiseram isso, eles clamaram pelo que aconteceu. Adoradores da morte.

Não havia muito a se fazer naquela cidade. Os talentos eram consumidos pelo álcool e por outras drogas. Esquecidos lá, na periferia do mundo real. K. amaldiçoava todos os dias aquele lugar. Queria ser músico, era bom, sabia, mas nascera no sítio errado. Todas as noites tocava seu saxofone no porão que havia construído para esse fim. A população se acostumara, não sem irritação, com aquele som distante e surreal como num fim de sonho. A casa de K. distava da cidade, mas as notas musicais voavam na noite e caíam por sobre os telhados, entravam pelas janelas e já quase imperceptíveis morriam nos ouvidos adormecidos da maior parte da população. Eram as notas de sua maldição sobre a cidade que o impedia do sucesso. E K. continuava tocando, pedindo a qualquer entidade oculta que se manifestasse e acabasse com seu sofrimento.

E ela surgiu. Na madrugada quente da periferia do mundo. K. tinha o dom. E foi escolhido. Hoje, quando celebra o pão e o vinho e ouve as confissões dos culpados, sabe que seu chamado não foi pra isso, mas para o que realizou no passado, na longínqua cidade. Não foi difícil achar seguidores. E no meio dos seis ceifadores, de campos e de vidas, L., sua companheira até o dia em que [esta] também apeteceu.

A música era seu guia. Através dela eles sabiam aonde ir. E toda noite que alguém desejava a morte ao som de uma música profana, eles concediam. Os adultos não comentavam na frente das crianças nem quando a noite se aproximava, dos estranhos suicídios, nos rostos irreconhecíveis, nos símbolos marcados nos corpos. E K. continuava a tocar à noite, a gravar nos inconscientes que sonhavam fornicando com a morte o ritual hipnótico para conhecê-la. E como numa onírica luxúria ouviam as músicas não consagradas e as adoravam e cobiçavam a morte e ansiavam por seu encontro.

Seis ceifadores, sessenta e seis ceifas. K. não dorme mais. Nada lhe adiantou o caminho da fé. A culpa não foi embora. E mesmo depois de duas décadas, ao fechar os olhos ainda vê L. sem a pele da face, pendurada numa corda. Ela ansiou pela morte, ele desesperou-se e seus seguidores o traíram. A Morte o traiu. Não, L., não sua amada. Ela o fez esquecer o seu desprezo e maldição à cidade. Ele romperia o trato que fez na madrugada quente. Depois da missa ele subiu à torre da igreja e ouviu as musicas não consagradas. E desejou a morte e se imaginou fazendo amor com ela. Ela estava lá. E ele pulou ao seu encontro.

Publicado originalmente no jornal O Benemérito em maio de 2004.