CORRESPONDÊNCIA SOBRE NADA

Ainda criança foi vítima de um acidente de carro que lhe deixou paraplégica. Pai dirigindo bêbado, festa de fim de ano, noite de alegrias. Ele e a mulher mortos. Filha gravemente ferida. Nada de novo, histórias que se repetem. Foi morar com os avós. Classe média alta. Não havia nada que o dinheiro não pudesse lhe comprar. Foi-lhe dado um mundo particular, onde todos os habitantes imaginários andavam de cadeira de rodas.

Não deixaram – e ela mesma não se sentia capaz – de enfrentar o mundo dito real. Nada de escolas, nada de faculdade, nada de carreira profissional, e nada, do melhor que permeia tudo isso, namorados, festas, porres, sexo, amizades falsas e verdadeiras, amantes. Tudo isso lhe parecia cenas de filmes que via e de livros que lia.

Sua maior diversão, na qual se sentia parte do sistema, era fazer cursos por correspondência. Na puberdade adorava ler os quadrinhos de anúncio do Instituto Universal Brasileiro nas revistas Disney que lia. Aquelas mensagens motivacionais em forma de arte seqüencial eram seu livro sagrado. Trazia-lhe um sentido – banal como todos – de viver.

Nunca sonhou seguir nenhuma profissão, mas se capacitou em muitas delas através dos cursos. Os responsáveis pelas correspondências do curso nunca perceberam um nome insistente nos registros de matrícula.

Publicado originalmente no folheto literário Do Ponto de Vista do Hipogrifo em maio de 2008.