OS CANGACEIROS E OS TRAFICANTES

Não há uma explicação única para o fenômeno nordestino do final do séc. XIX e início do séc. XX, conhecido como cangaço. Mandonismo dos coronéis e a servidão nas fazendas, miséria, desamparo e menosprezo da Igreja estão entre as mais citadas. Os estudiosos apontam uma pluralidade de causas. Ao observar essas causas e, naturalmente, suas conseqüências, vemos inúmeras semelhanças com um fenômeno mais próximo de nós, o tráfico de drogas.

O cangaceiro, ao contrário do mito, foi o bandido do sertão. O traficante, longe da celebridade midiática, é o novo bandido urbano. O cangaceiro foi o antigo jagunço, protetor do coronel e mantenedor da ordem. Rompeu com este para se tornar andarilho, mas as alianças continuaram. Muitos coronéis, políticos e religiosos poderosos viraram coiteiros, protetores dos bandos. Vários novos coronéis, políticos e religiosos protegem o traficante. Os dois primeiros com dinheiro, armas e cobertura penal; os últimos com os chamados direitos humanos do criminoso.

Cangaceiros tinham acesso a armas exclusivas das forças armadas. Isso lembra algo hoje? Policiais lhes vendiam armas, que compravam com o dinheiro dos saques e de aliados poderosos. Os de hoje, claro, não precisam roubar, vendem seu “produto” a milhares de pessoas iludidas com seus efeitos. Muitos policiais daquele período, que se alistavam nas volantes, fingiam perseguir os cangaceiros e por vezes praticavam crimes em seu nome. Alguns deles parecem ter sobrevivido até os nossos dias.

No cangaço não se matava gente de “posição”. Com raríssimas exceções é o que se vê hoje em dia.

Aqueles seguiam fora-da-lei, com um código de ética próprio, com punições para desobedientes e dissidentes. Praticavam seqüestros, assassinatos cruéis como degolamentos e desmembramentos. Mas, em contrapartida, alimentavam sua gente e distribuíam sobejo de saques aos pobres. Os de cá, vemos nos jornais, fazem isso todos os dias, mantendo muitos na favela com alimentos e remédios.

As mulheres amavam os cangaceiros e até faziam parte dos bandos, afinal eram livres aventureiros, ricos e perfumados. Os nossos, andam em carros de luxo, aparecem na TV e são celebrados em filmes e livros. Que garota sonhadora, aventureira e ambiciosa não os admiraria?

O povo, mesmo ultrajado, contava suas façanhas por vilas e cidades, tinha medo e admiração por aqueles homens vestidos com roupas de couro. Os de agora, metidos em roupas de marca, são admirados nas favelas e fora delas.

Eles produziram sua estrela mais brilhante: Lampião. Nós a nossa: Fernandinho Beira-Mar.

Há muito que o mito do cangaceiro revolucionário social foi desmentido. Agora é necessário eliminar a idéia de que o traficante está enfrentando o sistema e é o herói que irá subvertê-lo e transformá-lo.

Publicado originalmente no jornal O Povo (1ª vez em 25 de março de 2007 e 2ª vez em 1º de junho de 2007)