O SER PARA O OUTRO



A frase central do filme O Feitiço do Tempo de 1983 é Today is tomorrow. É dita pelo protagonista no ponto alto do filme, onde o mundo percebido por ele torna-se diferente. Seu personagem é Phill Connors, apresentador meteorológico. Ou homem do tempo.
Nesse filme vemos a importância de ser para o outro. Seguindo a linha de enredosnonsense de seriados clássicos como Além da Imaginação, o protagonista se vê acordando todos os dias no mesmo lugar e no mesmo dia. Enquanto todos os outros experimentam e percebem o dia como se fosse apenas mais um como outro qualquer.
O objeto fenomenológico para Phill é a experiência do dia repetido, registrando todas as experiências e interações sociais da manhã até a noite. Ele conhece, ao longo das centenas de dias repetidos, os dramas, histórias de vida e aspirações das pessoas com quem interage. Com algumas delas tem até experiências sexuais. Mas no dia seguinte, para ele o mesmo, ninguém mais se lembra do que viveram com ele. Ele percebe os outros através de memórias que os outros não as têm. E esses outros o percebem sem as experiências. Ele não é para os outros, não há acúmulo de trocas simbólicas entre eles. O ser para o outro desaparece. Como dizia Sartre, "O ser Para-si só é Para-si através do outro". Sozinhos somos constantes "tornar-se", "vir a ser" que nunca se completam.
Viver sem a memória do outro acerca de nós é solidão infinita. É ser invisível à percepção do outro. Por isso mesmo o protagonista diz que é um deus. O Deus cristão sabe, teologicamente falando na questão da onisciência, tudo acerca de nós, pensamentos e atos. Somos objetos fenomenológicos conhecidos por Ele, em nossa essência e existência, mas não o conhecemos a não ser, para os religiosos que acreditam, através dos relatos de sua palavra revelada, através dos livros considerados canônicos da Bíblia. E para outros, através da natureza. Da beleza do chamado Design Inteligente. Mas não o percebemos por completo. Deus seria, portanto, solitário. Sem falar que poderia fazer tudo, como o protagonista do filme, sem prestar contas a ninguém.
Claro que seguindo as tramas hollywoodianas o filme termina com o amor solucionando tudo. A percepção do dia de Phill Connors é pessimista. A la Schopenhauer. Percebe a si mesmo, nessas sequências repetidas como vaidoso e arrogante. Personagem que casa bem com as caras e bocas de Bill Muray que está ótimo no filme. Parece até que levou o mesmo personagem para outro filme que fez mais tarde, Encontros e Desencontros da premiada diretora Sophia Copolla, que assisti antes de O Feitiço do Tempo. Em Encontros e Desencontros a percepção da existência e do amor também é pessimista. O dia mal visto e repetitivo do protagonista (“Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias” nas palavras de Fernando Pessoa) se torna bom quando ele encontra o amor em sua assistente. O dia se torna outro. Today is tomorrow.
E Phill pôde finalmente apreciar a letra da música que todos os dias o acordava no rádio-relógio, infernizando-o.Babe I got You Babe I got you babe...

PUBLICADO INICIALMENTE NO BLOG GARAGEM DINÂMICA